sou abelheira e com muito gosto [confusos!?]


Adoro quando o meu avô me diz que sou a neta mais parecida com ele. Tenho um pouco de forreta. Tenho vestígios da corcunda dele. Tenho o tom moreno e acho que tenho a mesma abertura que ele tem com a vida. O meu avô tem 92 anos. Vive numa aldeia chamada Abades, onde os terrenos separam as casas e as casas têm perdido os vizinhos. Mas o meu avô gosta de viver lá. Por vezes, mas raras vezes, a saúde encaminha-o para a casa dos filhos. Ele não gosta. Ele perde o sorriso. E eu tenho uma dessas transformações gravada na minha memória fotográfica. Mas é também desse tempo que guardo uma cena deliciosa. Foi à mesa, na casa dos meus pais. O meu avô não estava bem. Não era o mesmo. Mas já não era a saúde que o desgastava… era o AMOR. Não sei se a palavra é forte para a idade dele, mas para mim não é. Acredito que se ama sempre, seja na intensidade que for. O meu avô tinha sido “abandonado” pela companheira, tal como se apelida aos namoros nessas idades. É certo que foi sempre uma relação com algumas turbulências e com entra e sai de casa, mas ficou claro que o momento era mais intenso. Ficou claro quando o telemóvel tocou e o meu avô virou adolescente ao ler o nome dela no visor. Rapidamente perdeu ainda mais anos de vida e virou criança quando percebeu que estavam prestes a fazer as pazes. Deviam ter visto aquela cara... aquele sorriso que invadiu a expressão do meu avô aos 80 anos. Também deviam ter ouvido as palavras sinceras que lhe saíram da boca ao mesmo ritmo do pensamento: “epá, até já me sinto bem melhor, já nem me dói nada!” A verdade é que ela voltou e a saúde também. Hoje estão os dois. São companheiros. Discutem. Ouvem-se um ao outro. Cuidam um do outro. O meu avô vai à vila de bicicleta. Faz as compras. Passam os dias entre as refeições e as cestas. Sobra pouco tempo para outras coisas, porque o cansaço não deixa. Mesmo assim, ainda há folgo para cuidar das galinhas, para tratar das oliveiras e há sempre tempo para ir almoçar fora ao domingo.

 
 
 
 

Sempre que visito o meu avô dou-lhe um abraço forte e ele a mim! Apertamo-nos muito porque gostamos muito um do outro. Eu devia de ir lá mais vezes, mas mesmo assim, o meu avô diz-me sempre para não deixar de viver a minha vida e para não deixar que ele me empate mais. Ele nunca me empata. Da última vez que estive com ele fiz questão de pedir para me repetir histórias e acabei por receber umas novas. Descobri que o meu avô esteve na construção da plataforma do aeroporto em 1943. O meu avô lembra-se de tudo. Não faz uma pausa enquanto conversa. Não procura nomes nem datas. Descobri que, à semelhança de hoje, eram mais as pessoas a pedir emprego do que as que tinham trabalho. E ele conseguiu, porque foi atrás, apesar de saber que não aceitavam mais pessoas. E no fim do caminho, encontrou  o encarregado da obra e saiu-se bem. Ganhou um papel para no dia seguinte começar a trabalhar. Acho que também tenho um pouco disso, dessa "sorte construída", talvez por uma atitude que passa qualquer coisa aos outros.

O meu avô chama-se Francisco. Para alguns é o Chico Abelheiro e eu gosto muito quando me dizem que sou abelheira. Por acaso não me lembro de onde vem essa alcunha. Nisso não saio ao meu avô. A minha memória envergonha-me. O meu avô tem muitas rugas, tem sempre o mesmo bigode e  uma boina na cabeça. No meu casamento escolheu um chapéu especial.  O meu avô conduz o mesmo Renault 25 bordô que veio de França. Ele não tem conversas de velho. Não gosta de ouvir falar mal. O meu avô foi corrigindo os erros da vida e continua a lutar por ela. Ele tem construído os seus magníficos 92 anos. Acho que se percebe porque gosto de ser abelheira.  


Comentários

Enviar um comentário

Mensagens populares