o meu coração anda meio esquizofrénico













Ando cansada. Andamos. Acho que até a Alice. Não pára. Começou a andar no dia do pai. Deu uns passos entre mim e ele. A meio do workshop "dança com o papá". E nós fomos estimulando essa caminhada de dois passos. Como se fosse grande. Com aplausos na chegada à meta. E nessa semana ela foi evoluindo. Já não precisa de nós. Já tem confiança. Já corre. Com as duas mãos no ar. Devem dar-lhe equilíbrio. Já fala ao telemóvel enquanto caminha. Já anda com dois livros. Um em cada mão. Já quer subir as escadas. Já sabe descer da cama e do sofá. Já acende o candeeiro da avó Manuela. Já leva o cesto das nozes da avó Emília. Mas as nozes ficam sempre pelo caminho. Já corre atrás da bola. Já gosta de sair pela porta da rua. Já sai da escola pelo chão. Já andou à chuva. Já caiu algumas vezes. Acho que já percebeu o efeito positivo da fralda. Ás vezes  até parece que sabe cair. Já deu cabeçadas. Já riu e já chorou. Já tem cuidado com a cabeça. Algum cuidado. Mas continua a não ver o que está no chão. E corre. E tropeça. E sorri. E sente-se liberta. Feliz. Mais autónoma. E no meio desta correria andamos nós. Também felizes. Com os olhos rasgados. O peito inchado. Mas cansados. Nem sempre com paciência. Acho que são saudades do sofá. Tranquilo. Silencioso. Acho que são saudades de não correr. E não são saudades de não correr atrás dela. Mas de não correr pela casa. Pelo supermercado. De não correr entre sopas e lanches. Entre roupas e arrumações. Entre o chão e a mesa de jantar. Ou entre o chão e o fraldário. E não estou sozinha. Mas mesmo assim estou cansada. Estamos. Às vezes gritamos. E não somos assim. Mas de vez enquanto a paciência foge. E a Alice nem sempre responde. Já sabe o que quer. Começa a ter autonomia. E nem sempre as nossas palavras lhes chegam. E às vezes também nos cansamos. De a distrair para se vestir. De cantar para não choramingar. De fazer o bichinho que foge pelo corpo. De dar beijinhos na barriga para não se levantar sem se vestir.  De dar corda à caixinha de música. De tocar no play vezes sem conta porque pede música. E porque assim que toca no telemóvel a música pára. De apanhar as meias que tanto tira e põe da caixa. Tantas e tantas coisas.  Não sei se sabem, mas os pais têm de ser criativos. E nós até somos. E divertimo-nos os três. Mas mesmo assim, às vezes lá se solta o grito. E o que isso dói. Acho que só os pais imaginam esta dor. E às vezes ela responde. Acho que responde mais aos gritos do pai. Confesso. Aos meus nem por isso. Mas um dia há-de conhecer a minha cara de má. Ela já reage às minhas expressões. Ela já reage. É tão bom. Tem memória. Se calço as minhas meias ela solto o grito "buhh". É o que fazemos no final do dia com ela. Mas quando as descalça. como se cheirassem mal.  Se fecho as persianas ela diz adeus à rua. Tal como um destes dias brinquei para a entreter. Se tem fome abre e fecha a boca com um som característico. E já põe o babete. Tenta pôr. Já sabe que tem de lavar as mãos. Já imita alguns animais. Já repete "olá". E a primeira palavra foi "qué". A pedir sempre comida, claro. O Pai é "Pa" e já disse "mamã". Acho que duas vezes. Quando peço para dizer "mamã", tal como o bebé oferecido pela vizinha Helena, ela responde "papá". Tantas e tantas coisas. Já brinca no jardim. Na casinha da escola e do posto médico. Diverte-se nas festas de aniversário, mesmo que os amigos sejam mais velhos. Não pára. Corre. Distrai-se e diverte-se. Diverte-nos. A todos. Somos mais felizes. Tenho a certeza. Sinto que sorrio muito mais. Até cansar as bochechas. Porque gosto de a ver. De a ver correr. De a ver cair. De a ver descobrir. De a ver surpreender. Gosto de ver a interação com os outros. Gosto que aproxime a família. Acho que até isso cansa. De gostar. Gostar. Tanto! É uma espécie de esquizofrenia. Um coração cheio mas com alguns silêncios de felicidade. Momentâneos. Aqueles que não me deixam escrever mais. Aqueles que não me deixam dormir mais. Aqueles que não me deixam namorar mais. Aqueles que não me deixam sair. Preciso de cinema, de música, de festas. Mas preciso dela. De aproveitar cada segundo. Cada contacto. Dói imaginar que um dia o colo acabará. Um dia será verdadeiramente autónoma. E este dia não será assim tão longe. Dói tanto que não me importo de me cansar. Só não quero é gritar.

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