Tenho uma família especial.

Tenho uma família especial. E não me refiro apenas ao meu marido e à minha filha. Nem se quer aos meus pais e à minha irmã. Também são. Mas vai muito além disso. São os tios e os primos. É do lado do pai e da mãe. Gostamos uns dos outros. Passamos tempo uns com os outros. Fazemos quilómetros uns pelos outros. Só para estar. Só porque valorizamos o estarmos juntos. No meu casamento senti isso. Foi em Março e não coincidia com as férias. E lá vieram uns de avião, outros de carro. De Ourém. Leiria. Batalha. De Paris. Vesoul. Basileia. Sei lá de onde. Só para celebrar. Estar. E agora fomos todos de malas e bagagens. Uns foram até Zurique outros até Paris. Uns partiram de carro. Outros fizeram escala no Porto para ir até Dole. Todos. Todos. Cheios de vontade. E os que ficaram foi apenas porque não conseguiram. Tenho a certeza. São 70 anos de vida. E que vida! Do meu tio mais velho. Aquele que não desistiu. Que não desiste. E que merece ver-nos lá. Porque sempre foi feito de vida. Muita vida e muitos sorrisos. Piadas que contava e se ria quase antes de as terminar. Muitas conversas. E muitos doces. Porque era o melhor pasteleiro de todos. Muito amor pela Terra. Por Portugal. Pela língua. A língua que perdeu. Porque há mais ou menos 10 anos a vida tirou-lhe os movimentos e as palavras. Mas reaprendeu. Reaprende todos os dias. Lá no seu silêncio. Muitas vezes não sabemos o que pensa. Mas com certeza é algo positivo. Ele é assim. E ele já se movimenta. Mesmo que muito devagar. Devagarinho. Não quer ajuda e quer conseguir sozinho. Tem um braço que não domina. Que treme quando o coração palpita. E esse braço comunica. Umas vezes é sinal de contentamento. Outras de reboliço quando a mensagem não passa. Quando a linguagem não acompanha o pensamento. Mas ele já consegue falar. Mesmo que muitas vezes tenha de repetir. E sentir que não estamos a entender. Mas ele fala. Cada vez melhor. Na língua que o recebeu. Não recuperou o português. Apenas o francês. Mas perceba as duas línguas. E fica feliz quando aviva a memória. Quando se lembra. Quando se lembra de uma história, de uma pessoa, de um lugar, de um momento. Fica feliz e repete. E ri-se. Com vontade. Com orgulho. E ficou tão feliz de nos ver lá. De ver a casa cheia. E ficou feliz de nos levar, a todos, numa volta a pé pela casa. Literalmente à volta da casa. No jardim. É a volta que ele faz. Que repete todos os dias. E mais do que uma vez por dia. Assim consegue ir recuperando os movimentos. Assim consegue distrair-se. Viver. E ganhar vida. Todos os dias. E foi isto que fomos comemorar. A vida. Fomos prolongá-la. Mesmo que durante a festa ele estivesse sempre sentado. Mesmo que não tivesse dançado. Mesmo que no fim já se sentisse cansado. Tenho a certeza que gostou de nos ver lá. Naquele lugar central esteve a observar. Naquele seu silêncio. E naquele rosto muitas vezes sem expressão. Confesso que nalguns momentos gostaria de imaginar aqueles pensamentos. De saber a verdade. O que sente. O que quer dizer naquele momento. Mas já não é bem assim. E mesmo que alguns momentos e pensamentos possam ter sido nostálgicos para ele, eu sei que ele sentiu a nossa energia. A nossa alegria. E cantámos e repetimos os parabéns. Nas duas línguas. Estávamos ali todos por ele. Por ele e por nós. Porque funcionamos assim. Em conjunto. Gostamos de estar juntos. Vivemos bem assim. Mesmo que seja de tempos em tempos. Mesmo que seja num ambiente completamente diferente do nosso. Por momentos senti-me num filme do kusturica. Tão ciganos. Todos de bagagens atrás. A cada hora íamos chegando. Abraçando. Surpreendendo. Recordando. Revivendo. Todos. Em alta voz. A ajudar. A preparar a festa. A decorar. A brincar e a brindar. A sorrir. A dançar. A cantar. E a rir muito. Naquela aldeia pequena. Onde o francês tem muito sotaque. Ali estivemos todos. Até ao dia seguinte. Dormimos uns em casa dos outros. Juntámo-nos de novo para almoçar. Para a despedida. E lá partimos todos. Cada qual na sua direção. Num dia cinzento e frio. Eu fui a olhar pela janela. Enquanto o meu tio Virgílio conduzia. E fui a pensar em nós. No quanto gostamos uns dos outros. E isso é tão bonito. E no aeroporto, enquanto esperava o meu voo de regresso a casa, escrevi. E em Lisboa, enquanto esperava pelos meus pais que vinham de outro voo, pensei... Ainda bem que tenho uma família especial. Que se junta. Que gosta. Que vive...
Que maravilha!
os manos e o brinde à vida

Comentários

Mensagens populares