as minhas manhãs mudaram


  














As manhãs estão mais frias. Mas não sinto o frio. Vejo. Porque todas as manhãs vejo a meteorologia. Ajuda-me a definir o guarda-roupa da Alice. Antes sentia. Quando abria a porta para a rua. Agora não. Só penso no frio quando chego ao trabalho. As manhãs estão mais curtas. Mas acordo mais cedo. E corro mais. Antes as acções prolongavam-se. Hoje estão muito mais "clipadas". E quando conduzo para Lisboa parece que o dia já vai muito mais avançado. As manhãs estão mais cronometradas. E os relógios lá de casa estão quase todos parados. Ou em horários antigos. Mas são os ponteiros que me guiam. Os do telemóvel. Já não mando no tempo. Já não me deixo ficar. As minhas manhãs estão diferentes. São menos minhas. Já não deixo correr a água no banho. Nem me deixo ficar enrolada na toalha. Nem sempre consigo usar o creme. Às vezes seco o cabelo junto à cama. Enquanto faço macacadas. E arranjo forma de o meu corpo servir de barreira para a Alice não cair. Há manhãs em que opto por lavar os dentes no trabalho. E todas as manhãs mal me olho ao espelho. Talvez duas vezes. No máximo. Mas na verdade não me vejo. Já cheguei ao trabalho com uma camisola ao contrário. Muitas vezes vou no caminho a pensar se tenho os sapatos iguais. As meias certas.  Mas vou ao espelho com a Alice. É lá que damos os bons dias. Assim que nos aproximamos sorrimos. Ela adora. E eu adoro que comece o dia a sorrir. As minhas manhãs mudaram. Já não como sozinha. Às vezes tomamos o pequeno almoço juntas. Brincamos com as luzes do microondas. Com as frutas. Com tupperwares. Enquanto como, agora brinco. Apanho coisas do chão. Passo chuchas por água. Antes não era assim. Não fugia pela casa. Vou à sapateira e escolho os sapatos. Experimento. Faço coucou à Alice. Subo para lavar os dentes. Oiço que chama por mim. Apareço a escovar os dentes para se rir. Volto a subir. As minhas manhãs estão diferentes. Sempre deixei o tempo falar. E o tempo dava-me tempo para ficar de frente para o espelho. Vestia-me e despia-me. Até acertar. Tomava o pequeno almoço. Demorava. Observava o jardim. Lia se houvessem revistas. Sonhava. Sozinha. Deixava que o silêncio falasse. Passeava pelo facebook. Agora o tempo já não me dá o mesmo tempo. Raramente sintonizo a minha rádio. Ou escolho um cd. Só quando faço os vapores à Alice. Aí a música faz-nos companhia. Ela adora. Adora o momento em que as luzes do rádio se acendem. E quando ouve os primeiros acordes. Mas hoje dançámos ao som de Carla Bruni. As minhas manhãs estão diferentes. Não dependem de mim. Há manhãs em que tenho de acordar a Alice. Mas faço tudo a correr porque nunca sei o que pode acontecer. Só deixo o tempo mandar quando sinto que o essencial está feito. Quando saboreio o pequeno almoço. As minhas manhãs estão diferentes. Mas ainda consigo ser criativa. Quando estou com ela. Faço questão de brincar. Deixo que fique comigo. Deixo que se despeça da mama e volte. Várias vezes. Damos mais cinco. Dizemos adeus ao espelho. Espreitamos pela janela. Dizemos adeus ao móbil se tiver a tocar na hora de descer e vestir o casaco. Na verdade isso não mudou. Continuo a dar tempo àquilo que parece menos importante. Continuo a correr contra o tempo na hora de sair de casa. Continuo a chegar no limite do tempo. Mas prefiro assim. Prefiro viver e vesti-la a correr. Prefiro brincar e não ter pressa de chegar. Sempre fui assim. Acho que tenho uma relação própria com o tempo. Parece que tenho sempre tempo para tudo. Mesmo que agora as prioridades sejam outras. As minhas manhãs mudaram. Quando entro no carro, respiro. Na viagem olho muito mais vezes para o espelho. Aquele que me deixa espreitar a Alice. No banco de trás. Ela olha para a paisagem. Às vezes conversa. Outras brinca. Também há momentos em que refila. Hoje, pela primeira vez, adormeceu. Depois o carro pára. Faço uma festa quando abro a porta. Seguimos agarradas e a conversar. No final do corredor entrego-a. E não corro. Deixo o tempo falar. Converso. Com as crianças e com os graúdos. Vejo as atividades na parede. Coloco a muda de roupa no cacifo. Deixo que a educadora me mostre as fotografias. Oiço o porteiro. Descobriu a semana passada que sou guionista. Acha um máximo. Às vezes cruzo-me com a mãe da Bia. Não tenho pressa. Até ao momento em que as costas se voltam. E faço rewind. E parece que o tempo pára e o dia recomeça ali. Entro de novo no carro tal como se fechasse a porta de casa. E enfrento o dia. As minhas manhãs mudaram. Mas estão mais quentes. O coração pode parece mais cansado. Mas começa o dia mais cheio. E mesmo acelerado eu continuo a dar-lhe tempo. Continuo a ouvi-lo. E continuo a conseguir sonhar. O segredo é brincar com o tempo. 

Comentários

Mensagens populares